Matéria / Polícia

LEI PERMITE que homicidas respondam em liberdade

NO PIAUÍ, QUEM MATA, PODE ATÉ fazer compras no supermercado usando tornozeleira

18/02/2015 | Edivan Araujo
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Na década de 90 o maior grupo de rock brasileiro, o lendário Legião Urbana, trazia em uma de suas letras, “Teatro dos Vampiros”, de autoria do ícone Renato Russo, o trecho “os assassinos estão livres, nós não estamos”. Os legisladores brasileiros, não satisfeitos porque esse ‘detalhe’ não estava previsto em lei, deram um jeito de reforçar essa máxima no arcabouço legislativo existente no país, e aprovaram uma aberração que há muito vem sendo posta em prática, fazendo com que os juízes - aqueles que não querem soltar -, tenham cada vez menos espaço para negar o pedido de liberdade.

Fazer o quê? Congresso Nacional é Congresso Nacional. Quando não quase sempre, de vez em quando estão aprontando das suas. Isso foi deixado bem claro pelo jornalista Lúcio Vaz, ex-Folha de São Paulo e ex-Correio Braziliense, que no livro “A Ética da Malandragem” trouxe os bastidores que o levaram a publicar a matéria que trazia à tona a existência do ‘Disque Cocaína’ dentro das dependências... Isso. Do Congresso Nacional. A matéria foi publicada na Folha na década de 90, mesma data da letra já bem atual naquela época da banda de rock.

CONGRESSO NACIONAL NEM SABIA O QUE ESTAVA APROVANDO
A lei que está tirando o sono de muitas famílias vítimas de homicidas e vai tirar da sociedade como um todo já é antiga, estava parada desde 2006 no Congresso Nacional, mas foi aprovada de forma relâmpago no ano posterior. Seus efeitos, no entanto, começarão a mostrar os dentes através do Estado, embora já esteja sendo usada pelos advogados de porta de cadeia para soltar seus clientes criminosos há tempos.

A mudança na Lei de Crimes Hediondos retirou dos impedimentos para homicidas o termo “liberdade provisória”. Dessa forma, quem mata, poderá responder em liberdade, já que o artigo 2º da lei, antes assim: “Os crimes hediondos [aqui incluso homicídio qualificado, que vem a ser o doloso, com intenção de matar], a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de II – fiança e liberdade provisória”; teve removido esse item II, ficando somente o termo “fiança”. Ou seja, matar com dolo (intenção), ainda é um crime inafiançável, no entanto, suscetível de liberdade provisória.

Agora será sempre carnaval. Lei dos Crimes Hediondos traz a supressão da liberdade provisória. Antes um impedimento para homicidas qualificados.Agora será sempre carnaval. Lei dos Crimes Hediondos traz a supressão da liberdade provisória. Antes um impedimento para homicidas qualificados.

A lei foi aprovada no calor da morte do menino João Hélio - vitimado após ser arrastado pelo cinto, por sete quilômetros, do lado de fora do carro, por assaltantes que roubaram sua mãe, e que ao serem avisados que arrastavam um menino de sete anos, eles diziam por quem passavam que aquilo não era um menino, mas “um mero boneco de judas” .

‘É NÓIS’ - Relator da lei, José Eduardo Cardozo, hoje ministro da Justiça, disse que ela era de interesse do governo Lula‘É NÓIS’ - Relator da lei, José Eduardo Cardozo, hoje ministro da Justiça, disse que ela era de interesse do governo Lula

A discussão da lei após esse brutal acontecimento, no entanto, girava em torno do endurecimento da progressão da pena para homicidas, mas o Congresso Nacional cometeu um ato falho. Dessa forma até mesmo quem for preso em flagrante, em tese, poderia responder em liberdade. A lei passou pela Câmara e Senado com esse erro, e foi sancionada pelo ainda presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

O relator da lei foi o hoje ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Na época o deputado disse que “nenhum parlamentar o questionou sobre a retirada da proibição da liberdade provisória”. Disse que o projeto era de interesse do governo Lula e falou ainda que o objetivo era se adequar às decisões dos tribunais superiores. “O texto já tramitava havia algum tempo e a justificativa estava claríssima”, declarou.

Deputado que solicitou o pedido de urgência da matéria, Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), disse que houve uma “falha” na votação da lei.Deputado que solicitou o pedido de urgência da matéria, Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), disse que houve uma “falha” na votação da lei.

Mas o deputado Antônio Carlos Pannunzio, que era líder do PSDB durante aquela votação, disse “não se lembrar” desse item. Ele é contra a liberdade provisória para o homicida até o julgamento final quando existir flagrante, caso contrário, a possibilidade de liberdade provisória não deve imperar, segundo ele.

Mas com a mudança na Lei dos Crimes Hediondos, tudo vira festa para os homicidas. Eles agora, ao assassinar, podem responder em liberdade. E como o julgamento de casos assim pelo Tribunal do Júri dera anos, até década, a exemplo do Caso Gabriel Mendes, que entre o assassinato e a prisão durou quase 12 anos, é provável que o assassino seja encontrado, por exemplo, fazendo compras nos shoppings de Teresina. A lei ainda retroage para beneficiar casos que ocorreram antes de sua aprovação e que não foram julgados ainda.

O autor do pedido de urgência do projeto de mudança na Lei, deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), que é advogado, chegou a admitir a falha na análise da matéria, e se disse contrário à liberdade provisória para homicidas.

“Não cabe porque o crime hediondo tem um agravante. Percebeu-se posteriormente essa falha na análise. Em algumas votações, corre-se o risco de o relator [o hoje ministro da Justiça] ser o senhor absoluto”, procura fugir da responsabilidade o parlamentar. E quem paga? Todos.

Setores da área jurídica defendem um adendo à lei para corrigir essa aberração.

ASSASSINOS USARÃO TORNOZELEIRA - LOGO, LOGO VAI VIRAR ADEREÇO
Dessa forma, os assassinos poderiam esperar o julgamento dos seus crimes em liberdade usando tornozeleiras eletrônicas, se, claro, atenderem a alguns critérios, ser réu primário, ter ‘bons antecedentes criminais’, endereço fixo, não estar propenso à fuga [quem vai saber?] ou a atrapalhar o trâmite do processo, e assim por diante.

Delegado Barêtta. Seegundo ele, criminosos estão roubando e matando com tornozeleirasDelegado Barêtta. Seegundo ele, criminosos estão roubando e matando com tornozeleiras

O coordenador da Delegacia de Homicídios, Francisco das Chagas, o Barêtta, disse que no Piauí, já viu criminosos monitorados por tornozeleiras cometerem crimes, e faz um desabafo sobre como está sendo banalizado o seu trabalho, que é o de justamente levantar provas contra homicidas e prendê-los.

Um dia após a morte do segurança do filho do governador, o militar Francisco das Chagas Nunes, Barêtta informava ao 180 que no dia anterior ao crime já estavam “comentando” de que a partir de então, segundo “orientações” [não disse se de alguém do governo], a preventiva para homicidas fosse aplicada em casos “extremos” e que em seu lugar fossem aplicadas medidas cautelares, como o monitoramento com uso de tornozeleiras.

“Senhores, aqui, quantas vezes nós temos prendido assaltantes e bandidos matando com tornozeleira? A lei é bonita, mas o Estado em si não se preparou para isso. A lei é bonita para ser aplicada pelo juiz, agora tem que haver uma harmonia e essa harmonia entre os poderes existe justamente para que a população não pague por isso. Porque se não a gente vai ver pessoas derramando mais sangue no dia-a-dia”, alertou.

SECRETÁRIO DE JUSTIÇA DIZ QUE ESTADO ESTÁ SE PREPARANDO
O secretário de Justiça, Daniel Oliveira, última sexta feira 13, durante entrevista ao180, disse que já havia falado com o governador Wellington Dias para aquisição de tornozeleiras eletrônicas visando o monitoramento de presos.

Secretário de Justiça, Daniel Oliveira, disse que já conversou com o governador para a compra de tornozeleiras.Secretário de Justiça, Daniel Oliveira, disse que já conversou com o governador para a compra de tornozeleiras.

“Eu já tratei do tema com o governador. Nós estamos adotando as providências para reorganizar e reestabelecer o contrato que estava vigente”, garantiu o secretário.

O CONTRATO VIGENTE?
É... para fechar mesmo o rol de descaso falta só o governo do estado contratar aquela empresa que fornecia tornozeleiras ao Piauí pelo dobro do preço.

EM TEMPO
A mudança na lei atende a setores mais progressistas no Brasil. Como então explicar essa discussão inteligível ao cidadão comum, num país com índices crescentes de homicídios e onde se permite que um ladrão de galinha fique preso durante anos - e até de manteiga, como já foi constatado - e um homicida ande lado a lado com seus pares?

 
Com informações de Rômulo Rocha / 180graus
Imagem:Ilustração

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